O patrimônio ambiental: em qual mundo viverão seus netos?

O patrimônio ambiental: em qual mundo viverão seus netos?

Muito recentemente o Papa Francisco consolidou suas preocupações ambientais na profunda e elegante carta encíclica Laudato Si, Sobre o cuidado da casa comum. Nos últimos dias foi divulgada pesquisa envolvendo três respeitáveis universidades norte-americanas, Stanford, Princeton e Berkeley, publicada na Science Advances, com o título Accelerated modern human–induced species losses: Entering the sixth mass extinction* (por Gerardo Ceballos,  Paul R. Ehrlich,  Anthony D. Barnosky,  Andrés García,  Robert M. Pringle,  Todd M. Palmer) pela qual os vertebrados estão desaparecendo a uma taxa bem mais rápida do que aquela que seria normal: 114 vezes! E há uma semana comprei na livraria Zaccara, de meu bom amigo Lúcio, o livro publicado em português agora em 2015, pela Objetiva, A inovação destruidora, do filósofo francês Luc Ferry. Com certeza, já me perguntam qual o elo nisso e aonde pretendo chegar com tal convergência.

Talvez sejam meus netos o elo, em especial o Paulinho, 12 anos, que passou o último final de semana comigo e, muito preocupado, perguntava o quanto ainda nós, os humanos, viveríamos então, ou sejam todas essas futuras gerações, ainda por nascer, mas que estão tendo sua oportunidade de vida solapada pela desinteligência dessas nossas gerações atuais!

Não há nada mais o que contestar: os fatos são evidentes demais, falam por si, seja no conhecimento científico, seja na razão filosófica, seja agora com o vigoroso endosso do Papa Francisco, trazendo também à cena o saber religioso. Essa é a convergência: religião, filosofia e ciência, num coro único, a apontar a marcha quase inexorável que estamos perpetrando rumo, senão a uma possível destruição, pelo menos a um tempo de triste estética.

No décimo parágrafo da Encíclica nos diz o Papa:

“10. Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.”

E inicia o seguinte parágrafo décimo-primeiro com uma referência que, aparentemente singela, retoma um debate antigo e profundíssimo, ainda não concluído, a despeito de todo esforço iluminista, e que insiste em manter na cena humana aspectos da transcendência da vida e de uma ética decorrente válida, que extrapola o puramente físico e reinstala em nosso percurso terráqueo uma metafísica de valores que, quando não mais, nos ajuda a equilibrar nossa insaciável ganância dirigida ao poder e ao material.  Provoca-nos o Santo Padre:  “O seu testemunho mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano.”

Luc Ferry, forte nome do humanismo secular, no livro já apontado por alguns como polêmico, ressalta a dupla face, o bom e o mau, da inovação destruidora (uma espécie de evoluído da destruição criadora ou criativa, do economista austríaco Joseph Schumpeter, e aqui permiti-me novamente recordar dos netos e do Pokémon…). A inovação destruidora, que opera nos campos da política, da economia e das artes, é sempre um motor para o crescimento, ao mudar em obsoleto o antigo. Mas tal caminho “lógico” é também paradoxal, na medida em que pode engendrar – e ao que parece engendra – um estado de pura perplexidade diante da falta geral de referências que as substituições vão produzindo com seu ritmo alucinante a fim de suportar o interesse do próprio capitalismo e sua lógica… Na Encíclica, em seu Capítulo 1, O que está acontecendo em nossa casa, o Papa também nos adverte para o ritmo veloz das transformações. Nas páginas 29-30 de seu livro Luc Ferry escreve:

“No mundo capitalista, de fato, a história mundial, a Weltgeschichte de que falavam Hegel e Marx, não avança mais guiada e por assim dizer “aspirada” pela representação de um fim, de um grande desígnio, como ainda se podia pensar ou pelo menos esperar, no tempo da luzes, da Revolução Francesa ou ainda da Terceira República, mas nós avançamos irreprimivelmente levados pela lógica anônima, mecânica, automática e cega da inovação pela inovação. Para o empreendedor que deve se adaptar sem descanso a uma concorrência agora mundial, a inovação alucinada não é uma perspectiva cheia de sentido, um grandioso projeto de civilização, mas um caderno de encargos, uma necessidade absoluta, um imperativo vital. Assim como uma espécie animal que não se adapta é“selecionada” no mundo de Darwin, uma empresa que não inova continuamente é destinada a desaparecer, a ser engolida pelo vizinho.”

Vê-se que ao lado dos já mencionados aspectos positivos (e tantos são!) das inovações, resta irremovivelmente aderido um caldo negativo seja representado pela sensação de insegurança produzida pela não fixação de padrões (e nós humanos e neuróticos temos imensa dificuldade para viver sem eles), seja pela exploração sempre incessante e crescente de recursos naturais, como também avassaladoramente crescente resulta a produção de resíduos e descar
tes (inclusive, triste viés,
o descarte humano…). Contudo, Ferry nos transmite uma expectativa razoavelmente otimista do processo de transformação-inovação inerente à lógica capitalista, o qual quanto mais esclarecido mais chances pode acumular de ser bem sucedido. No último parágrafo do livro, à página 119, ele nos anima:

“Quando vejo a degeneração da cultura contemporânea, de uma arte que tem sucesso nos mercados, apesar do fato de ter deixado de ser bela e sensata, mas graças a isso mesmo; quando vejo o estado da educação das nossas crianças na esfera privada, e a volta de ideologias soberanistas, nacionalistas, antieuropeias na esfera pública, eu digo a mim mesmo, às vezes, que não estamos à altura, que não merecemos nossa própria herança, que o lado destruidor da inovação talvez tenha vencido nosso lado humanista e criativo. Não sou, contudo, pessimista. Caberáà nossa juventude responder a essas interrogações, caberá a ela decidir se quer desviar o curso da história para o pior ou para o melhor. Nada está perdido, o jogo não acabou. A moeda ainda está girando.”

Voltando ao texto papal, no parágrafo décimo-terceiro, Sua Santidade também apela de modo confiante: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum.”

Ora, contrapondo-se à vontade do Criador parece haver outra realidade, de alguma forma produzida e/ou facilitada por nós, e que nos ameaça a todos, conforme os pesquisadores antes mencionados nos alertam. Trata-se da afirmação de que a biota da Terra está entrando numa sexta “extinção em massa”, a qual depende de as taxas de extinção atuais estarem muito acima das taxas de “fundo” verificadas nas cinco extinções em massa ocorridas anteriormente. Estimativas anteriores de taxas de extinção foram criticadas por adotarem premissas que podiam superestimar a gravidade da crise de extinção. Os autores, então, usaram em seu estudo premissas extremamente conservadoras, para analisar se as atividades humanas estão provocando uma extinção em massa. Primeiro, empregaram uma estimativa recente de uma taxa background de extinção de 2 mamíferos por 10.000 espécies por 100 anos, que é duas vezes mais elevada que estimativas anteriores amplamente utilizadas. Depois, comparam essa taxa com a atual taxa de extinções de mamíferos e vertebrados, e a taxa média de perda de espécies de vertebrados no último século foi de até 114 vezes mais elevada do que o background. Sob a taxa base antes citada, o número de espécies que foram extintas no século passado teria levado, dependendo da taxonomia dos vertebrados, entre 800 e 10.000 anos para desaparecer. Essas estimativas revelam uma perda excepcionalmente rápida da biodiversidade ao longo dos últimos séculos, indicando que uma sexta extinção em massa já está em curso. E os pesquisadores enfaticamente nos dizem que “evitar uma deterioração dramática da biodiversidade e a subsequente perda de serviços ecossistêmicos ainda é possível através de intensificação de esforços de conservação, mas essa janela de oportunidade está se fechando rapidamente.” O tema perda da biodiversidade é também bastante contemplado no antes citado Capítulo 1 da Laudato Si.

No tópico 6 do Capítulo 1, denominado A fraqueza das reações, entre outros aspectos o Papa menciona um ponto que considero de grande importância, qual seja, o da formação de novos e verdadeiros líderes para um projeto humano renovador e de outra qualidade do que a que temos experimentado. Há algum tempo (2012), tive a oportunidade de expor alguns pensamentos a respeito num artigo intitulado Liderança Ambiental – O Novo Desafio (Competência) para o Líder Empresarial

Reflete o Papa, fazendo-nos recordar a idéia de desenvolvimento sustentável (mesmo porque a justiça intergeracional é tratada nos parágrafos 159 a 162): “O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem prejudicar as gerações futuras.” porque “Há um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar.” (Capítulo 3, A raiz humana da crise ecológica, parágrafo 101.) O Papa propugna por uma Ecologia Integral, que “inclua claramente as dimensões humanas e sociais” (o que me fez pensar muito nas três ecologias do filósofo francês Félix Guattari).

A Encíclica traz a evocação clara do diálogo e da transparência como atitudes para a superação das dificuldades. Isso deve ser aplicado não só nas práticas e posturas de governos, nas políticas públicas, mas, ainda, em todos os recantos e atividades da vida social, nas empresas e comunidades, incluindo-se, saliente-se, um diálogo de melhor qualidade, respeito e seriedade entre os saberes religioso, científico e filosófico. Por meio de um aprofundamento do pensar ecológico, que não descarte os avanços e inovações tecnológicos e econômicos, mas lhes sirva de inspiração para uma ética vigorosa e inabalável, sobretudo orientada pelo e para o outro, seja este outro a outra pessoa ou o meio ambiente ou os futuros moradores desse mesmo planeta, orientada, repito, para os reais e honestos desejos e necessidades destes, tomando a educação permanente e a contínua inclusão como fontes propulsoras e asseguradoras da utopia, é que se enxergará o lugar e a representação de uma sociedade humana plena e justa, que foi concebida por Deus e pela Natureza para ser madura.

 

*Arquivo pdf disponível em: http://advances.sciencemag.org/content/advances/1/5/e1400253.full.pdf

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